Não consigo dormir, nunca mais.Ando de um lado para o outro. canso o corpo,enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.
Lá fora, dentro da noite, os chacais, as hienas cercama casa. mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras,
esta hiena que me devora o sonho.
Pela janela vejo a linha crepuscular da duna.um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora demim- vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das cidades.
Sei, nesse instante, que nenhum abraço chega paraatenuar a dor da separação.Afastados, tudo o que nos resta é começar a imitar avida um do outro.
O que dissemos perdeu o sabor e o sentido.Harrar, aden, lisboa, este silêncio... capaz de ordenare desordenar o mundo. o canto sublime das miragens.
Mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça.
Abri a janela.avisto uma nesga de céu limpo.Lembro-me de quando trocava um sorriso por umverso, ou por um insulto.Imitávamos assim a felicidade.
O sol fulmina a memória.
Limpa-a da crueldade do passado.A vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas,
ideias que se evaporam lentamente.Enfim, o mundo não é assim tão grande...
E a vida, afinal, é como as orquídeas- reproduz-se com dificuldade.Mas estou cansado.Os olhos fecham-se-me com o peso das paixões desfeitas.Imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras- imagens de neve e de miséria, de cidades obsessivas, de fome e de violência, de sangue, de aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos... talvez... talvez uma voz.
O desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto dormia.
E embarquei num cargueiro, desertei um java, pensei mesmo construir uma casa.Mas não foi possível.
Ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos,e a duna incendiada,
o deserto onde posso continuar areconstruir o universo.
Escavo no coração um poço de sal, para dar de beberao viajante que fui.Deixo o vento arrastar consigo a infindável caravanade ilusões.
E digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs,que tudo silencie... e uma língua de fogo atinja os livrosque não escreverei.
(Al Berto- HORTO DE INCÊNDIO)